terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O monstro


De vez em quando, às quatro, quatro e meia da manhã, testemunha o fim da noite em seu mais frágil estilo. Pouco importa estar só, ver um filme, roer unhas... Habituou-se a dias inda mais infindos.
Seu plano era construir um simples registro. Uma imensa vontade de crescer. Desejo. Um desabrochar, que de velho, podre. Fedendo entre gavetas da cozinha, provocando insetos.
Não era mesmo de amigos. Mas, isso é segredo. Nunca. Sequer na infância. Estranho demais, em qualquer aspecto referencial. Memórias de ninar, criança magrela, falando consigo mesmo, ora em primeira, ora em terceira pessoa.
Muito antes de perceber valor nas coisas que fazia, um ou outro elogiava, a seu modo e coerência. Pouco depois o outro, pluralístico personagem, e o que importava? Seu riso, seu choro, aquela dor de cotovelo ou tesão reprimido. Se fosse mulher, seria frígido, acredito.
Vez ou outra inda percebo; tinha dificuldades de se enxergar. Nunca soube se acolher, tampouco escolher, se cuidar. Cresceu complexo demais para si. Vivo, arranhava discos demais. Discos raros. Nunca aprendeu a se despedir.
Tinha medo de ficar sozinho. Percebo que julgasse provável, enrugar-se lidando com seus desmazelos, fugindo das janelas, esquecendo-se dos nomes... De uma tristeza sem medida.
Sonhava numa filha. Ou um filho, sequer. Mariana e Renato. Ou Isadora e João. Ou Marina e José. Ou Chico. Talvez um bom pai. Nunca soube se acreditava no amor. Provavelmente não. Não tinha capacidade de amar. Não sei, faltou essa aula.
Vejo-o desaparecer de minha vista, curando suas feridas. Por fim, parece mais pétreo, mais distante. Vidas que se paralelam a mim, da noite pro dia, dançando com outros pares valsas e tangos intermináveis.
Um dia, talvez, compreenda dos tempos frios e neve no peito. Inda ser útil. Num instante, perceba que tinha absolutamente um nada. Nem sorte, nem rima, além de tristes coincidências.
Um dia, talvez, inda jovem, sem memória, observando gestos alheios.
Um dia, ou noite, de sol ou chuva... meu amigo de infância. Ainda criança, correndo trecho. Nem sei seu nome, tamanha proximidade.
-Um beijo, boa noite, acorda, já é tarde!
-Você pode me tocar o rosto?
...
Nossa, há quanto tempo..
...
E dentro de si, existe um monstro que se alimenta de cuidado.

Joana


Brincando com a correnteza,

lavando a alma em sal e sol, vivia Joana.

Mulata faceira, pobre puta,

Nobre pagã.

Pobre filha da sorte

Pobre filha do abandono de Ewá.


Desde moça abriu mão de si

Por um prato, um trato

Um agrado barato,

Um gesto perdido.

Guardava em seu decote

O desejo de mudar.


Mas vida é bicho arredio

Que rosna contra,

E ataca por trás.


Joana, velha imunda,

De olhos tristes semi cegos e corpo robusto,

Mareja feições perdidas nas ondas do mar.

Como quem deseja abrir mão de vez de si.